VIRALISMO (intro)
o início da história de como nos tornamos sujeitos obrigados a viralizar.
entre sustos, absurdos e alguns solavancos, 2022 foi um ano em que todos estivemos "meio Eliezer". em Setembro, o rosto do ex-BBB ao anunciar que se tornaria pai traduziu à internet um estado de espírito que condensou, em uma única expressão, choque, desafetação, uma exaltação desanimada e um certo desespero(?). Eliezer curtiu virar pai, porém não curtiu virar meme. mas, como sabemos, a internet tem as suas próprias regras do que deve receber visibilidade. o interessante é que talvez o mood “meio Eliezer” represente mesmo uma forma de navegar situações que já nos é bem familiar — algo que fica na fronteira entre o Real e o enredo premeditado de um Reality Show, ou um show de horror.
Eliezer do Carmo Neto participou da 22ª edição do programa e teve uma ótima sobrevida de fama graças ao relacionamento com a também participante e youtuber Vitória de Felice Moraes, a Viih Tube. depois de poucos meses de namoro, o casal surpreendeu a cultura popular brasileira com uma peça de comunicação que anunciava a gravidez da dupla. de trending topics à matéria no Fantástico, o vídeo abriu as portas para uma fábrica de memes. e assim, Lua Moraes Netto Tube (?) já ostenta mais de 1 milhão de seguidores no Instagram. a BBBaby simboliza um tempo em que pode-se — ou deve-se — hitar antes mesmo de chegar no mundo.
vazou. urgente. grave! 🚨tão importante quanto a gravidez em si, pelo menos para os milhões de brasileiros que acompanham essa saga de 40 semanas, são os reacts que se sucederam após o comunicado. na lógica das redes, estamos sempre sedentos pelo que os famosos — e os não famosos — têm a dizer.
o VIRALISMO é esse empuxo que nos convoca a fazer parte de qualquer acontecimento e capitalizar em cima da gestação e amamentação do que entrou em pauta. faça render até onde der. e mais: fale bem, fale mal, faça um episódio de podcast sobre isso, anuncie aqui o seu produto. a chance de tirar uma casquinha é o que está por trás da corrida por formar a "opinião certa" ou simplesmente fazer a piada perfeita, o que muitas vezes parece até a mesma coisa.
fazemos isso para alertar e militar em cima de atos públicos violentos, como aconteceu com o controverso tapa de Will Smith em Chris Rock no Oscar de quase um ano atrás. ou com os crimes hediondos de Margarida Bonetti, a Mulher da Casa Abandonada, que mobilizaram uma comunidade de defensores do antirracismo muitas vezes bem perdidos em sua própria branquitude. ou mesmo para lamentar os desfechos mortais da realeza mainstream, como as mortes da Rainha "Colonizadora" Elizabeth II, o amado Rei Pelé ou a maravilhosa Gal Costa — que Rafa Kalimann homenageou em um post e depois prontamente apagou, pois foi acusada de choro oportunista.
enquanto isso, indo mais além na deepweb, a tiktoker de 19 anos, Stephanie Mecco, dançava ao lado do leito de morte de sua mãe na UTI e declarava "Obrigada, mãe! Nosso último vídeo juntas está batendo quase 7 milhões de visualizações." são fatos marcantes (ou irrelevantes?) que nos ajudam a fazer reflexões sobre os desdobramentos do luto espetáculo.
são histórias trágicas, com mais versões do que caberia no Twitter ou em qualquer análise selvagem como essa; com diferentes ordens possíveis dos fatos e com múltiplas intenções conscientes e inconscientes que deveríamos minimamente tentar interpretar. mas é tudo rápido demais, e ninguém quer perder a oportunidade de falar qualquer coisa sobre tudo aquilo que está se falando agora. quem sabe assim falam qualquer coisa da gente.
voltando à vida, ao futuro e aos baby influencers que ainda nem nasceram, dizem que a atriz Claudia Raia teria sido bastante ofensiva com o jornalista que não sabia o nome da sua nova cria. o jornalista estava mesmo desinformado, pois sua gravidez foi veiculada em formato publicitário para uma marca de teste de gravidez, no qual a artista performou surpresa e deu um exemplo bastante ambíguo a mulheres de mais de 50 anos: a ideia de que, de um dia para o outro, você pode acordar grávida… e ainda estar pronta para registrar esse momento mágico com seu companheiro. ou melhor, sapatear. e, obviamente, lucrar com isso.
ainda sobre o estudo de caso Viih Tube, o real efeito da @pequenalua na vida do casal ninguém sabe dizer, mas em termos promocionais, pode-se concluir que a gravidez foi um grande sucesso. uma análise rápida no Google Trends mostra que o anúncio trouxe à atriz um volume de buscas e menções equiparável à sua participação no BBB. a live do chá de revelação gerou um nível impressionante de comentários. os enxovais em Orlando e Miami renderam números astronômicos de visualizações. assim como aconteceu com as confissões do seu “desejo de grávida” de consumir ração canina. bobagem, né? 😂 "A gente sempre se expõe de graça.", é o que ela diz.
e, assim, "maternidade" passou a fazer parte da lista de temas dos seus canais. na gramática das redes, Viih Tube não ganhou apenas uma filha e inúmeros publis; conquistou também uma nova vertical para seu planejamento editorial.
no fim, a diferença supostamente abissal entre a intimidade que uma mãe tem com sua criança e que um creator tem com seus seguidores talvez nem seja tão grande assim. a própria criadora do formato "chás de revelação" decretou que provavelmente seja hora de pararmos com tantas cenas abomináveis e exageradas que tomaram as redes. episódios que levam a acidentes, mortes e, obviamente, à imposição de gênero. o chá de revelação é o sintoma de que, no contemporâneo, até as “partes íntimas” de uma criança viram assunto público, e mais que isso: atração do show, sem a sua permissão.
“um bebê e um BBB são muito parecidos” afirmou Tiago Leifert, ex-apresentador do programa da TV Globo. essa fala também parece apontar para uma certa infantilização do sujeito adulto na cultura atual. “oi, oi, meninas e meninos!” é a saudação de Viih Tube ao abrir os seus vídeos. estamos mesmo uma época em que abusamos dos recursos de linguagem euforizantes. fazemos com que tudo pareça uma grande brincadeira, meio despretensiosa, cheia de artifícios aparentemente inocentes, memes e efeitos especiais para entreter e distrair a nossa audiência. a cena de um bebê hipnotizado por um móbile de berço não parece tão diferente de qualquer um de nós rolando o TikTok — em estado de transe, maravilhamento (e tédio) frente a um espetáculo giratório de imagens, cores e sons.
VIRALISMO é sim sobre realizar grandes sonhos. e é também sobre inspirar os outros a realizarem os seus. é gerar impacto de todos os tipos. é quebrar a internet, lotar a caixa de comentários, chuva de likes e patrocínios. é conseguir manipular alguns processos ocultos do nosso psiquismo digital. mas tudo isso tem consequências. e vamos ter que elaborar os efeitos de tantas estratégias de awareness, engajamento e conversão — na nossa vida e na vida dos outros.
a premissa fundamental do VIRALISMO é que exposição é potencial de sucesso. afinal, se você está se expondo, ou expondo os outros ao seu redor, é porque alguém está querendo ver. e, de algum jeito, pagando pra ver. e quanto mais gente estiver na fila desse circo, mais vantagens você vai eventualmente poder tirar de tudo isso. será?
* VIRALISMO é uma série de VIBES sobre as implicações de uma vida terrivelmente online na nossa subjetividade, em nossas relações e aspirações.
os textos que compõem esse estudo serão lançados nas próximas semanas no Substack da float, em 04 diferentes ângulos:
#1 VIRALISMO é O SONHO DA MEGAESCALA, a crença de que todo mundo tem direito a uma Mega-Audiência.
#2 VIRALISMO é ECONOMIA DA TENSÃO, a história de como a Economia da Atenção evoluiu para a Economia da Tensão.
#3 VIRALISMO é CYPHRORIA, uma dinâmica que nos faz confundir a Realidade da Internet com o Real.
#4 VIRALISMO é O ESTÁDIO DA SELFIE, a aposta no enaltecimento de um Ego em contínua distorção.
Seria um sonho que esses textos fossem distribuídos nas escolas como paradidáticos?
Fantástico.
Que texto bom de ler. Ansiosa pelos próximos!