VIRALISMO #04 : ESTÁDIO DA SELFIE
a aposta no enaltecimento de um Ego em contínua distorção.
vamos começar com um pouco de arqueologia: há quase uma década atrás, em maio de 2015, Kim Kardashian lançava o seu primeiro livro: Selfish. em 2016, relançava o icônico livro com mais 64 páginas. o conteúdo? as suas melhores selfies.
segundo o Urban Dictionary, uma selfie é “uma imagem de si mesmo tirada por si mesmo", uma definição vaga e precisa o suficiente para a lógica das mídias sociais. Paris Hilton afirma ter inventado as selfies, junto com Britney Spears, lá por 2006… mas essa é só mais uma narrativa.
o que realmente importa é refletirmos como as selfies são uma parte estruturante do tecido cultural das mídias sociais, do direito ao VIRALISMO, e um pedaço fundamental da constituição do sujeito terrivelmente online. produzir e divulgar uma imagem de si, feita com suas próprias mãos, de forma artificialmente natural, é equivalente a olhar-se e admirar-se no espelho antes de sair de casa — só que é um comportamento ainda mais poderoso, mais neurótico e mais narcísico.
além de tudo que já discutimos nas vibes anteriores, o VIRALISMO é também um agudo enaltecimento do Ego; Ego esse que é formado a partir das projeções que fazemos da imagem que acreditamos que os outros têm da gente.
a selfie não é só a divulgação da nossa imagem, como em um retrato posado, mas sim a divulgação do que o nosso próprio olho é capaz de enxergar sobre nós mesmos e do que os nossos dedos são capazes de manipular a respeito de nós mesmos; ou seja, é sobre a nossa autoimagem idealizada à máxima potência.
o espelho (e a selfie?) são anteparos categóricos para que o sujeito 1) compreenda que essa imagem é mais do que uma soma de partes desconexas e desenvolva algum domínio, ainda que instável, sobre a sua identidade facial e corporal; 2) enxergue uma imagem que minimamente o interesse, que respeite, admire e até ame; e 3) internalize a ideia de que essa imagem representa ele mesmo e que "deve ser mais ou menos assim que os outros também me veem". ou ainda, “é assim que eu pretendo ser visto daqui para frente".
arriscando uma hipótese, este seria um ato simbólico que, de alguma forma, assemelha-se ao ato que inaugura o nosso psiquismo, nos primeiros meses de vida, através da constituição de um Eu (imaginário) — processo que o psicanalista Jacques Lacan descreve no clássico texto de 1938, Estádio do Espelho.
a grande sacada aqui é que o sujeito vai sempre precisar do olhar do outro nessa brincadeira. algo como "o outro me pega contemplando a minha própria imagem e eu me identifico com o que eu acho que foi visto", inclusive com todas as nuances de vergonha ou vaidade que povoam o momento do flagra. o Estádio do Espelho é uma etapa fundamental do desenvolvimento infantil, mas a verdade é que seguimos reproduzindo essa remontagem narcísica pelo resto de nossas vidas, em uma espécie de reatualização da nossa própria autoimagem e formação identitária.
mas o que será que a velocidade alucinante, os mecanismos altamente repetitivos, o Sonho da Megaescala e a pressão pela performance online estão provocando nessa reprise especular? como se dá o Estádio da Selfie em um contexto de VIRALISMO?
O filtro enquanto cárcere narcísico
como acontece na dinâmica do Estádio do Espelho, existem infinitas ilusões de ótica nas percepções do Eu e do Outro, mas que, no tempo atual, se dão de forma ainda mais serializada e opressora através das mídias sociais. são ilusões que, segundo inúmeros estudos, têm tido decorrências bastante severas para o nosso psiquismo, com consequências que são particularmente mais intensas entre os mais jovens. por exemplo, 84% das meninas brasileiras com 13 anos usam aplicativos para alterar as suas selfies. enquanto pais são levados a tomarem medidas bastante extremas e traumáticas, como deletar o perfil da uma filha que contava com 2 milhões de seguidores.
a selfie no campo hipercompartilhado é um reforço ao imaginário que, apesar de necessário, continua a nos enganar e nos fazer crer que estamos contemplando imagens refletidas em um espelho relativamente plano e reto. quando, na verdade, são espelhos côncavos e convexos que distorcem as imagens de acordo com a posição do sujeito e dos milhares/milhões de olhares que o rodeiam. além, obviamente, da influência de regras misteriosas de algoritmos que desconhecemos (não bastassem os inconscientes de todos envolvidos na cena). só que não chamamos isso tudo de distorção; chamamos tudo isso de "filtro".
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