gays de fórum, pratuxo das madrinhas e sono luxuoso
uma breve seleção de objetos culturais, linguagens, casos e fofocas que você não sabia que queria ficar sabendo.
você não é a Isabela Boscov: gays de fórum e o estado atual da crítica
há quem já abre o Letterboxd no momento em que as luzes do cinema se acendem. há quem feche um livro e, imediatamente, inicie sua resenha no Goodreads. ou no TikTok. tem até gente canetando no esquecido Last.fm. a sensibilidade do consumir por simples prazer parece estar se esvaindo do nosso cotidiano: o tempo da apreciação foi substituído pela correria do review com a intenção de contar pro mundo o que você achou. a opinião que deve engajar, hitar, corre já para postar suas 5 estrelas nos stories.
nas temporadas de grandes premiações como Grammys, Globo de Ouro e Oscar, todo mundo vira crítico de cinema e música. sempre foi assim, mas agora é mais. você pode até nem ter assistido o filme ou o álbum indicado, mas talvez já tenha opiniões para compartilhar. até porque, no atual estado das mídias sociais, a moeda social é essa mesmo: a opinião. e não dá para culpar ninguém quando o caso é Emilia Perez — é irresistível opinar. mas quando todo mundo está opinando, parece que a internet vai se tornando mais e mais cansativa. e a questão que fica é: quanto todo mundo tem algo a dizer sobre qualquer coisa, onde vai parar a crítica?
engrossando esse caldo cultural, temos talvez uma das maiores instituições das redes, um dos pilares fundamentais da Era do Viralismo: gays de fórum. aficionados por cultura pop, navegam por comunidades e caixas de comentários distribuindo reviews e reacts com maestria. e, claro, dizendo que você, na verdade, não entendeu nada. ou mesmo disparando opiniões controversas com um toque especial de “…mas vocês não estão prontos para essa conversa”, a manobra básica da ética do lacre. afinal, a crítica especializada das redes não só te incentiva a assistir, ler ou escutar algo, mas também te diz o que você deve pensar.
Susan Sontag, em Contra a interpretação, convida o leitor a exercitar a sensibilidade ao interagir com obras de arte. antigamente, a arte era vivida como encantamento. depois, deveria justificar a si mesma, com seu conteúdo, e dizer alguma coisa. para Sontag, a interpretação da obra de arte tenta solucionar uma equação difícil entre o significado da obra e o que seria o seu ideal para o leitor/espectador.
na maioria dos casos, Sontag enxerga a interpretação como uma “recusa grosseira a deixar a obra de arte em paz. a arte verdadeira tem a capacidade de nos deixar nervosos. quando reduzimos a obra de arte ao seu conteúdo e depois interpretamos isto, domamos a obra de arte. a interpretação torna a arte maleável”. nos tempos atuais, a interpretação altera radicalmente o sentido do texto. publicado em 1966, Contra a interpretação parece mais necessário do que nunca.
ainda que o discurso atual seja o de que há espaço para que todo mundo tenha sua própria opinião, a prática é mais próxima de uma lógica de manada. quando uma posição destoa da visão da massa, a caça às bruxas entra em vigor. a crítica do Chavoso da USP ao filme “Ainda Estou Aqui”, indicado a três categorias no Oscar de 2025, seguida por um tsunami de ataques, é um bom exemplo.
o que pode parecer um benéfico – "uau! todos têm uma opinião e direito de expressá-la" –, também pode acabar desencadeando um empobrecimento do mundo simbólico. entre opiniões impopulares e humildes opiniões, temos uma rede fantasmagórica de significados na qual, convenhamos, não se constróem muitos pensamentos novos. e é assim que faz-se a mousse do empuxo ao sentido fechado de grande parte das mídias sociais. abaixa que ela está atirando.
retomando a Sontag; a ensaísta acredita que os comentários desejáveis sobre arte, a crítica ideal, é sobre não usurpar o lugar da obra, mas sim dar atenção à forma sem atenção excessiva ao conteúdo. resta saber se Sontag aguentaria meia horinha de twitter / X. talvez esse seja o motivo pelo qual muitos críticos odeiem tanto resenhas engraçadinhas de uma frase no Letterboxd: não sobra muito espaço para o subtexto e nem para abrir novos sentidos. é apenas bom ou ruim?, desliza para esquerda ou para a direita?, quantas estrelas vale o show?
seguindo o pensamento do Antonio Candido, um dos críticos brasileiros mais importantes da história, a análise de uma obra passa sim por levantar discussões intelectuais e diagnosticar a cultura contemporânea. desde que o exercício analítico não comprometa a intuição e a sensibilidade. ou seja, uma vivência estética mais genuína e não mediada por explicações excessivas. nossa cultura é baseada no excesso, na superprodução; a consequência é uma perda constante da acuidade de nossa experiência sensorial.
se Sontag nos ensinou que explicações excessivas são tentativas de domar as obras de arte, ou mesmo de reduzi-las a algo preestabelecido, há de se pensar o que estamos efetivamente produzindo na atual lógica de fóruns. é a quantidade de análises, por exemplo, das letras da Taylor Swift, os infinitos debates — ou conspirações? — sobre as “verdadeiras” razões pelas quais ela escolheu dizer “bom dia” em vez de “boa noite” em uma música.
yotra, talvez a crítica das redes esteja tão interessada em produzir e engajar, que acabe sacrificando a tal da livre opinião. seguindo nessa trilha, vamos comprometendo nossa capacidade de nos deixar afetar por uma obra, de deixar o entendimento ir se formando dentro de nós. postar antes mesmo de sentir ou intuir. e vale lembrar que, muitas vezes, falar muito é também falar nada.
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