VIBES: PROIBIDÃO PLANETÁRIO
o mundo quer dançar a batida que uma parte do Brasil quer censurar.
o funk brasileiro vive hoje um paradoxo central: sua batida reverbera em escala planetária, moldando a sonoridade de artistas como Beyoncé e Kanye West e invadindo o K-Pop. enquanto isso, por aqui, é alvo de uma ofensiva que busca controlar, silenciar e criminalizar sua existência.
o reconhecimento global contrasta com uma elite hegemônica que, ao ver seu poder de ditar narrativas ameaçado, reage com força. essa tensão não é um debate sobre gosto musical, mas uma disputa explícita sobre poder, território e quem tem o direito de produzir cultura no país.
a tão comentada campanha global da marca de luxo Rabanne, que celebrou o funk carioca, é um sintoma dessa dinâmica. representa o momento em que a potência da periferia se torna tão inegável que atrai os mercados de luxo e internacional que estão em busca mais relevância, juventude e frescor.
contudo, essa celebração acende um alerta sobre um fenômeno que podemos definir como GENTRIFICAÇÃO ESTÉTICA: o processo pelo qual elementos culturais de grupos marginalizados são reembalados e valorizados por um público de maior poder aquisitivo, muitas vezes esvaziados de seu contexto original e sem que o valor gerado retorne à sua comunidade de origem. a estética do funk é consumida, mas a liderança criativa e os lucros permanecem, em grande parte, nas mãos de uma elite local desconectada ou de talentos estrangeiros.
essa expansão da influência do funk chegou a espaços antes inimagináveis. a musicalidade tomou conta das passarelas da semana de moda de Paris 2025, servindo de trilha sonora para desfiles de grifes como Jacquemus, Mugler e Casablanca. ao mesmo tempo, a batida contagiante desembarcou na Coreia do Sul, onde o funk, tem influenciado o k-pop através de diversos grupos, inclusive no megahit Like Jennie produzido por Diplo. a faixa com claras influências do funk tornou Jennie a solista feminina de k-pop mais ouvida na história do Spotify. essa onipresença global torna o funk um ativo cultural de altíssimo valor, desejado por marcas e indústrias que buscam se conectar com sua energia e autenticidade.
aliás, da mesma forma que o k-pop se tornou um motor de soft power coreano, o funk poderia impulsionar o Brasil no cenário global. só que é exatamente nesse ponto que a engrenagem falha.
Brasil anti-funk?
poucos casos são tão complexamente emblemáticos quanto o do artista Oruam, que para grande parte do público é conhecido primariamente por ser filho de Marcinho VP, apontado como um dos líderes do Comando Vermelho. essa associação imediata costuma ser o ponto inicial e final da análise de muitos, alimentando uma narrativa óbvia de criminalização e censura. e como defender Oruam? e outros com histórias mais ou menos parecidas?
e mais: por que a Dazed, uma das revistas de vanguarda cultural mais respeitadas do mundo, escolheu esse jovem brasileiro para estampar sua capa? o que uma publicação como essa enxergou em sua arte, história e representatividade que o público e as marcas no Brasil se recusam a ver? como resume o artista em INVEJOSO, “quando comecei foi poucos que acreditou / hoje tá vendo que o avião decolou.”
a fratura ficou exposta quando a Osklen, que vestiu o artista para o editorial, celebrou a colaboração em suas redes sociais, mas a marca foi rapidamente inundada por uma pressão de consumidores que rechaçaram a associação. a resposta da Osklen foi o recuo: publicação removida. Oruam, por sua vez, acusou a marca de racismo, afirmando que "as grandes marcas não entendem que estão perdendo".
tudo isso é mais um exemplo do caso crônico de EUFORIA DO HYPE: uma marca deseja surfar na onda da relevância cultural, mas não está preparada para sustentar a complexidade e as tensões que vêm junto com ela. o passo pra trás demonstra que, para a elite consumidora e para a marca que a serve, o funkeiro, o corpo periférico e negro, com sua história complexa e suas contradições sociais, ainda é um corpo estranho demais, problemático demais, quem sabe até brasileiro demais. é o Brasil, mais uma vez, mostrando a sua cara e o seu corpo.
a tentativa de controle e abafamento não se limita ao mercado. ela ecoa com força na esfera política. a mesma matéria de capa da Dazed que celebrava Oruam também compartilha uma reflexão sobre os desafios enfrentados pelo funk, em especial o projeto de lei apelidado "Anti-Oruam".
essa proposta, que visa proibir músicas com menção a temas como organizações criminosas, violência ou drogas, pode funcionar como uma perigosa ferramenta de censura generalista. sob o pretexto de combater a "apologia", ela também ameaça silenciar a crônica social da periferia, abrindo um precedente para que um pequeno grupo com poder de decisão, através das suas lentes hierárquicas e racialmente homogêneas, decida o que é "aceitável" e pavimente o caminho para uma "cultura oficial" pasteurizada e desconectada da realidade.
é o famoso: “não faz sentido um gênero musical brasileiro fazer sucesso sem estar dentro dos parâmetros do socialmente aceito”. surra de contradições em um país que produziu o icônico álbum Sobrevivendo no Inferno do Racionais MC's. nas palavras do Mano Brown: ”chamavam Racionais de gênios, mas só falamos o óbvio.”
ou seja, este movimento não novo e nem um um fato isolado. a agenda anti-funk se conecta a iniciativas como a CPI dos Pancadões em São Paulo. a pretexto de “investigar a desordem”, serviu para reforçar a criminalização da cultura funk e de seus espaços de convivência. o resultado prático dessa visão de que "baile funk é caso de polícia" é a legitimação da violência.
não é coincidência que, em um país onde, segundo a Agência Brasil, quase 90% dos mortos pela polícia em 2023 eram pessoas negras, leis que criminalizam sua cultura sirvam como um aval simbólico para essa brutalidade.
no estado de São Paulo, o cenário é cada vez mais alarmante: as mortes de crianças e adolescentes em decorrência de intervenções policiais aumentaram 120% entre 2022 e 2024, e dados apontam que negros são 3,7 vezes mais vítimas em intervenções letais da PM paulista. tragédias como o Massacre de Paraisópolis – onde nove adolescentes morreram durante uma desastrosa operação policial em um baile funk em 2019 são a consequência direta dessa política que enxerga a cultura como caso de polícia, uma letal ferida que permanece aberta. e muito infeccionada.
normaliza-se a ideia de que celebração de pobre e preto não é só um "lugar de crime”, mas um lugar que não tem direito de simplesmente existir. como esquecer a hedionda operação do BOPE em um festa junina da comunidade no último Junho, no morro Santo Amaro, que feriu cinco participantes e covardemente tirou a vida do jovem Herus Guimarães Mendes, de 24 anos, que trabalhava como office boy e deixou um filho de dois anos sem pai?
rebotes em revoada
mas tem uma coisa que o funk definitivamente não faz: baixar a cabeça. o rebote da ofensiva institucional vem em diferentes formas de resistência. a Frente Nacional de Mulheres do Funk, por exemplo, tem sido uma voz potente na defesa do gênero como cultura e espaço de trabalho, pautando a luta contra a misoginia dentro e fora do movimento. na mesma batida, durante a CPI dos Pancadões, proposta na Câmara Municipal de São Paulo pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), o trabalho de ativistas como Renata Prado, diretora da Frente, foi crucial para disputar a narrativa.
enquanto o vereador Nunes afirmava que os bailes são "perturbações de sossego atreladas ao tráfico de drogas, ao crime organizado", Prado e outros membros da comunidade se organizaram para ocupar as audiências públicas e confrontar essa visão higienista. Prado criticou diretamente as afirmações de Rubinho Nunes, argumentando que ele "atribui um problema social ao movimento funk" e "prefere criminalizar a buscar caminhos de diálogo".

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é precisamente na guerra de narrativas que se dão as vitórias institucionais do movimento. a existência de datas oficiais de celebração ao funk expõe o paradoxo brasileiro: enquanto uma parte do poder público tenta criminalizar, outra é forçada a reconhecer e celebrar a sua força cultural.
no estado de São Paulo, o Dia do Funk é comemorado dia 7 de julho, em homenagem à memória de MC Daleste, assassinado durante um show em 2013 em Campinas. a data é um lembrete da violência que atravessa os corpos funkeiros. mais recentemente, em um reconhecimento histórico, o Senado aprovou (e Lula sancionou) o Dia Nacional do Funk, comemorado em 12 de julho. essas datas não são concessões, mas conquistas arrancadas pela força e organização do próprio movimento e legitimam o funk como parte inegável da cultura brasileira. temos aqui um contraponto direto e importante às narrativas que tentam empurrá-lo de volta para a marginalidade.
a articulação política alcançou um novo patamar com a criação, em agosto de 2024, da primeira Frente Parlamentar em Defesa do Funk na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), uma iniciativa coordenada pela deputada Ediane Maria (PSOL) em parceria com a própria Frente Nacional de Mulheres do Funk. o objetivo é "buscar, por meio de um debate democrático, que a cultura do Funk seja reconhecida e inserida na concepção da política pública do Estado". não é pouca coisa ocupar um espaço de poder historicamente hostil, transformando o funk de objeto de investigação em sujeito político ativo dentro do legislativo.
o perigo da lei "Anti-Oruam" e de discursos semelhantes é sua insistência em enquadrar todo o gênero como apologia, quando, na verdade, o funk reflete sobre a sociedade em seu contexto de descaso, abandono de políticas públicas e sonhos atrelados a projetos de vida seguros e autônomos. não é à toa que o gênero é a principal expressão cultural da juventude: segundo dados da Bananas Music, dos 20 artistas mais ouvidos pela Geração Z no Brasil, 50% são do universo do funk. há um abismo entre a realidade vivida por milhões e a narrativa que tenta-se impor.
a criminalização das culturas periféricas não é novidade no Brasil. e, no caso do funk, as acusações de apologia ao crime e degradação da moral e dos bons costumes são também formas de ignorar toda a força social do baile. o funk e seus bailes são, muitas vezes, as únicas estratégias que a juventude periférica possui para acessar cultura, lazer e, através da arte, refletir sobre as ausências de políticas públicas que deveriam garantir seus direitos básicos. é uma possibilidade de elaboração coletiva que vem exatamente da possibilidade de conviver e dançar junto.
a negação da cultura de favela
muitos dos estereótipos da toada anti-funk são reforçados pela mídia de massa sob um verniz intelectual muito refinado. um exemplo didatico é o artigo "Caso MC Poze expõe exaltação duvidosa de progressistas à cultura da favela", escrito por Felipe Motta Veiga, na Folha de S. Paulo. Veiga parece entoar o coro de parte da academia que se sente à vontade para rotular culturas periféricas como "grosseira", "lasciva" e fruto do baixo nível de escolaridade e educação. como se os artistas — e fãs — que cantam sobre a cultura de favela que venceu e os corres da diretoria fossem apenas incentivos à marginalidade. e como se não existissem favelados intelectuais, doutores e mestrandos com grandes diplomas. a universidade é plano de carreira para muitos favelados e deve continuar sendo.
o problema é que a visão hegemônica segue acreditando que o conhecimento oficial validado é apenas aquele que nasce dentro de seus muros. mas a epistemologia que cresce distante do entendimento ocidental — baseada na oralidade, nas trocas e nas vivências que existem nas comunidades periféricas, aldeias e quilombos — tem tanto valor simbólico e intelectual quanto, senão mais, que a lógica institucional que conhece o mundo apenas através da leitura e da escrita canônica.
o saber vivido no corpo, envolvido através da oralidade e nas comunidades é uma forma de produção de conhecimento tão rica e complexa quanto a acadêmica, a literária e ocidental.
o que esse tipo de movimento hegemônico promove, na prática, é um "assassinato epistemológico". afinal, acaba aniquilando outros saberes em detrimento de um suposto conhecimento "limpo", "puro" e “universal”, que historicamente se valeu de ferramentas como o determinismo biológico para validar ou invalidar certas culturas e expressões. no final das contas, desqualificar a produção criativa e intelectual do funk é também perpetuar uma lógica que associa corpos negros e periféricos à ausência de pensamento, uma ferramenta de controle social tão antiga quanto violenta.
a questão central aqui é que uma parte da elite intelectual, política, rica e normativa não suporta perder o controle sobre os impactos do funk no Brasil e no mundo. daí, na ausência de elaboração, recorre à clássica negação. segue propagando a narrativa de que artistas negros, periféricos e favelados são desprovidos de razão e bom senso. temos aqui a clássica reação direta à ascensão de vozes que não pediram permissão e não passaram por crivos de herança ou hierarquia tradicionais para se tornarem protagonistas.
é curioso que parte do mercado tem negado esse encaixotamento que desvaloriza a tal cultura de favela. aos poucos, algumas marcas globais parecem começar a entender o perigo da Euforia Hype e perceber que a Gentrificação Estética não proporciona conexão genuína.
ao observarmos o mercado, percebemos algumas marcas navegando de forma oposta e em contraste distinto às polêmicas anteriores. vemos a Mizuno, que ao celebrar os 40 anos da sua chuteira Morelia, entregou a criação de sua campanha global nas mãos de talentos criativos periféricos para liderar uma narrativa mundial. já a New Balance escolheu São Paulo como palco da campanha global de lançamento do novo Abzorb 2000, e foi se conectando com criativos periféricos que a campanha global foi construída.
a cada batida que ecoa nas ruas (e nas lojas!), o poder da origem se torna mais inegável. é o funk que inunda Paris durante a Fête de la Musique, com carros de som automotivo e artistas como DJ Ramon Sucesso fazendo um público multicultural vibrar. de Los Angeles a Tóquio, a cada artista da favela que estampa uma capa de revista internacional, fica mais evidente qual é a cara do futuro.
a verdade é que a ascensão do Proibidão Planetário é irreversível, e as tentativas de censura política-intelectual e até mesmo um certo esvaziamento mercadológico não conseguem conter a força de uma cultura que se tornou um dos produtos de exportação mais potentes do Brasil. o funk continuará crescendo, e a cultura periférica estará cada vez mais no centro do debate global como referência de criatividade e inovação.
no bom português, como disparam Tasha & Tracie:
“só aceita, eu me destaquei de você / só aceita, que nóis abala o rolê.”
esta vibe é co-assinada por Wes Xavier, especialista em comportamentos de consumo periféricos com olhar antropológico para tendências e comportamentos de consumo do Brasil real. ouça seu podcast Papo de Tendência.