tem dias em que navegar pela realidade coletiva parece uma sessão de tortura. um transbordamento de imagens fortes de violência, misoginia, racismo, corrupção, impunidade, desigualdade, golpe iminente… e, sobretudo, de ódio. habitar o espectro social e o Brasil de 2022 é tentar controlar a nossa fúria e indignação. você até se esforça para não participar do levante, manter a razão, mas o Real é forte demais pra ser Simbolizado. nos faltam palavras, passamos ao ato. nem pensamos direito, porque alguém tem que fazer alguma coisa.
no contraponto, também se instaura um clima de desafetação e cansaço generalizado. uma impotência avassaladora marcada pelo sentimento de “deixa pra lá”, porque é como se tivéssemos mesmo sido deixados pra lá. enquanto os alertas vão sendo repetidos à exaustão, a tragédia se naturaliza, e somos tomados por um sentimento coletivo de normalização da catástrofe. uma tristeza profunda. instala-se a DEPRESSÃO CÍVICA.
DEPRESSÃO CÍVICA é o labirinto de absurdos, desumanidades e anedonia em que muitos nos encontramos. é a sensação de que o mundo está em chamas, mas seguimos comprando air fryers. é desistir da esfera coletiva, porque mal dá para dar conta da esfera individual. se a missão do Facebook um dia foi aproximar as pessoas, a náusea das redes ressentidas desperta um efeito inverso: um desejo de estar bem longe — dos outros, de si, simplesmente bem longe daqui.
o termo DEPRESSÃO CÍVICA foi usado pelo filósofo Benedetto Croce no contexto do fascismo italiano; e também mencionado por Frei Betto, em 2015, antes do impeachment da presidenta Dilma Roussef. a expressão foi retomada pelo professor Eduardo Guerreiro Losso, em um artigo recente na Revista Cult sobre o sofrimento psíquico que habita o Brasil dos dias atuais.
nas palavras de Losso: “DEPRESSÃO CÍVICA atinge, em geral, uma camada progressista da população, que não necessariamente desenvolve sintomas depressivos individuais, mas participa de uma verdadeira dor coletiva vinda da tortura que é acompanhar o noticiário cotidiano, lidar com os conflitos na família, no trabalho e participar do inquietação das redes sociais. (…) é um sofrimento psíquico que incide na fragilidade do brasileiro, agredido pelo bombardeio cotidiano das várias formas de desmonte institucional.”
@saquinhodelixo / @yproject_official
padecimentos em uma sociedade desajustada
o sofrimento coletivo é respaldado pelo crescimento do adoecimento psíquico do Brasil. segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria, um quarto da população tem, teve ou terá depressão ao longo da vida. e o número de suicídios dobraram nos últimos 20 anos no Brasil (Datasus). são números que refletem uma tendência em países latinos como México e Colômbia (Folha, 2022).
psicanalistas ultrapolitizados, como o professor Christian Dunker, há alguns anos, vêm trabalhando com essa hipótese depressiva nos tempos neoliberais, uma definição para os tempos atuais em que os sujeitos vivem à base do gozo, da auto-otimização e da produtividade infinitas. vidas que, ironicamente, sucumbem em um fracasso improdutivo e deprimido.
você pode até não sofrer de sintomas de ansiedade, burnout ou quadros depressivos, mas definitivamente sente ou já sentiu as consequências do adoecimento psíquico daqueles ao seu redor. até porque ninguém adoece sozinho e, exatamente por isso, tais quadros são questões de saúde pública.
o psiquiatra Ricardo Nogueira, coordenador do CPV (Centro de Promoção à Vida e Prevenção ao Suicídio), sintetiza alguns sintomas e causas do nosso estado atual dos nervos com o que ele chama de “6 D's": desesperança, depressão, desemprego, desamor, desamparo e desespero — fatores que são pilares fundamentais da DEPRESSÃO CÍVICA e que, de novo, não habitam só a psique do sujeito, mas especialmente os campos da esfera pública: a atividade direta do governo, a abordagem da mídia e, claro, a movimentação nas redes sociais.
a perda de uma ilusão coletiva
uma análise bastante simplista e um pouco selvagem de discursos e narrativas das redes mostra muitas semelhanças com sintomas de quadros depressivos. memes e tuítes-desabafo falam com angústia e amargor sobre a perda de ideais significativos, ainda que não saibamos articular muito bem o que foi perdido. como diz o título da última obra do psicanalista J.-D Nasio, “A depressão é a perda de uma ilusão.” não se trata somente da perda de um objeto externo e amado, mas a perda de um objeto interno. não perdemos só o que tínhamos, perdemos também o que éramos.
em sua defesa, e sempre sem tempo, a única saída do sujeito parece ser responder com uma ambivalência extrema e Imaginária, na qual “só” é capaz de reagir com amor ou ódio. atacar ou se sentir atacado. o humor colérico e irritadiço que povoa nossas interações não é mero acaso e não é só culpa do empuxo paranóico dos algoritmos. é parte de um desarranjo discursivo de quem tem tido muita dificuldade de encontrar sentido e esperança no mundo. estamos juntos nessa.
a bipobaridade política revela alguns nuances: enquanto uma boa parte da direita neofascista tende para um estado maníaco-agressivo, outra boa parte da esquerda encontra-se profundamente deprimida, condenada a um ciclo vicioso de desinvestimento e autovitimização. mas quem consegue lutar por uma nova realidade, quando se sente um sobrevivente de uma guerra interna? nessa batida, como diz em muitas caixas de comentários, “o embrulho no estômago não passa 😢”.
frente a tudo isso, é natural que muitos de nós nos protejamos em um certo pessimismo defensivo. a DEPRESSÃO CÍVICA tem se manifestado inclusive nas falas e posições de muitos grandes pensadores do contemporâneo. como disse Sueli Carneiro na grandiosa entrevista ao Mano Brown, “eu ando muito pessimista”.
vale lembrar que a depressão cívica é o rebote de uma sociedade descrita pela socióloga Tressie McMillan Cottom como modelo de cidadania-do-consumidor. é o resultado de um contexto em que renda e emprego são as unidades básicas de estar no mundo e, na prática, as únicas formas de se ter dignidade: “a cidadania-do-consumidor nos treinou a pensar em política como um conjunto de transações que podemos comprar, assim como compramos um carro ou um novo par de sapatos. a restauração dos direitos humanos exigirá um engajamento político direto e uma tremenda resistência”.
possibilidades reparadoras
os últimos anos têm sido sentido por muitos como uma sequência de abalos sísmicos na cultura e na sociedade. rachaduras que nos marcam e abrem vazios que nos engolem, e enquanto não formos capazes de falar sobre tais eventos, seguiremos nos sentindo à beira do penhasco. nesse sentido, “só” se importar com tudo isso não será suficiente. é preciso, ao menos inicialmente, ser capaz de nomear a dor partilhada.
como escreveu Anne Helen Petersen na Culture Study, “nos importar é tudo o que parecemos ser capazes de fazer. doar é tudo o que parecemos ser capazes de fazer. cruzar nossos dedos para que um estado permaneça um lugar seguro para você (…) é tudo o que parecemos, e nos sentimos, capazes de fazer. e não é o suficiente”. se as redes nos ensinaram que “sharing is caring” (“compartilhar é se importar / cuidar”), precisaremos de formas mais ativas de cuidado e reparação, porque apenas a militância das redes não vai dar conta do recado.
a psicanalista Maria Rita Kehl retoma o trabalho da filósofa Jeanne Marie Gagnebin a respeito das condições de elaboração do trauma do holocausto na sociedade alemã, concluindo que é preciso "uma memória ativa que transforme o presente". a cura para os sintomas sociais é possível através "de intervenções coletivas em espaço público, que reorganizem o campo simbólico de modo a incluir e ressignificar os restos deixados pelo evento traumático."
no final de todo processo de luto, existe a capacidade de encontrar significado. nossa capacidade de produzir sentidos é imprescindível para enxergarmos e habitarmos novas realidades, para além desse torpor. ou seja, a elaboração é fundamental para qualquer reconstrução da cidadania. e mais: se a internet e o cenário midiático nos levam a um certo empuxo mortífero, algo deve ser feito com aqueles que estão articulando as novas possibilidades, quem está trabalhando a favor da regeneração do tecido social e das melhores condições de vida do coletivo — no lugar, por exemplo, de empresários que afirmam que “a desigualdade social impulsionada pelo mercado é a fonte do progresso.”
esse mundo estranho pode ser o começo de um novo mundo, desde que sejamos capazes de sustentar uma imaginação radical e propositiva, mas que vá além da positividade alienante good vibes only de tantos gurus do nosso tempo. quem sabe se a gente parar de tentar esconder a dor, consigamos enfim sonhar e criar um novo amanhã? um amanhã para além das gôndolas de desigualdade e normas brancas cis-hetero-patriarcais. uma vida para além do medo e apagamento da dor do outro.
afinal, é a fragilidade da falta que impele o desejo. e como escreveu Antonio Gramsci, “pessimismo da razão, otimismo da vontade.”
alguns links para ir além na DEPRESSÃO CÍVICA:
o texto na revista Cult em que o professor Eduardo Guerreiro Losso apresenta as definições de Depressão Cívica;
Citizens No More (não mais cidadãos), o texto da socióloga Tressie McMillan Cottom no NYTimes sobre o modelo atual de cidadania que reduz nossa participação política ao modelo de consumo. e “nos importar” é tudo que parecemos capazes de fazer.
o livro mais recente do psicanalista argentino J.-D. Nasio, A Depressão é a Perda De Uma Ilusão, no qual o autor propõe novas abordagens e até sugestões práticas de como diferenciar a tristeza normal da depressiva;
a vasta obra do professor e psicanalista Cristian Dunker sobre uma certa hipótese depressiva dos tempos neoliberais, um sistema polício-ideológico-cultural que deprime o sujeito. especialmente no Brasil.